Caro Samuel,
Vou escrever em inglês e português porque poderei compartilhar esta carta com pessoas que não lêem o segundo.
A. De Onde Eu Venho
Qualquer discussão de qualquer assunto, não importa quão objetivos queiram ser os interlocutores, inevitavelmente reflete os históricos intelectuais e emocionais das pessoas envolvidas. Há pessoas que colocam muito peso em emoções, e para elas argumentos baseados em critérios “objetivos” e na lógica poderão cair em ouvidos surdos. E há pessoas que tentam ser lógicas e objetivas, e para elas apelos ou argumentos emocionais têm menos ou nenhum peso.
Alguns dos fatores mais importantes—talvez o mais importante, se terminarmos explodindo o planeta por causa deles—na luta da humanidade de sobreviver e prosperar são suas religiões. Religiões por definição, de forma explícita ou implícita, efetivamente têm que ser totalitárias: porque uma pessoa acreditaria em algo que ele/ela pensasse não verídica? Ergo, se ele/ela acredita em algo, é porque é verdade. E ergo novamente, se alguma outra pessoa acredita em algo que contradiz o que ele/ela acredita, é claro essa outra pessoa está errada.
Há uma correlação inversa bastante boa e relativamente alta entre nível de instrução e crença religiosa, especialmente na Europa, e há uma correlação inversa muito alta entre atividades profissionais envolvendo a ciência e crença religiosa. Varia entre país e país, como você esperaria, mas existe consistentemente. As estimativas são de que entre 10% e 20% da população norte-americana seja anti-teista enquanto 50% a 75% dos seus cientistas sejam. Na Europa as porcentagens são consideravelmente mais elevadas.
Tendo sido criado numa família protestante religiosa—e protestantes, como você poderá saber, não subscrevem aos “milagres” comicamente frequentes dos católicos e não têm “santos” a não ser os citados nos textos bíblicos—me lembro do silêncio inconveniente que se seguiu quando, depois que alguém havia lido um texto da Bíblia, eu com talvez sete anos perguntei porque milagres não ocorreram desde os tempos bíblicos.
Para tornar um argumento longo mais longo, nas minhas pretensões à racionalidade não compro os argumentos para religiões. Rejeito os argumentos que o julgamento tem que ser suspenso em questões de fé: é impossível apresenta uma boa razão para isto. Rejeito o conceito que religiões e as ciências possam coexistir: novamente, os únicos argumentos são tautologias. E porque não há evidência para justificar a idéia, eu acho não convincente—quer dizer, inacreditável—o argumento de que conceitos apresentados em textos bíblicos foram inspirados por um deus ou deuses. As escritas bíblicas foram clara e bastante obviamente concebidas pelos seus autores. São adições ao continuum das metamorfoses de religiões, uma na outra ao longo do tempo, todas o resultado da necessidade do homem de explicar o que não compreendia e—não incidentalmente—manipular e consolidar poder político por argumentar apoio divino.
Enquanto as religiões transmutaram de uma para outra, formaram-se ramos; os mais famosos aos ocidentais, é claro, é que Islã, Judaísmo e a crença cristã tiverem um patriarca comum, Abrão. E já que todos são conjuntos de crenças montados pelo homem, cada um é tão “válido”—ou, eu argumentaria, “inválido”—quanto os outros. Assim as crenças de um muçulmano são tão válidas ou inválidas quanto às de um judeu ou cristão, independente de quão impossível poderá ser ao judeu ou ao cristão aceitar isto. São válidos ou inválidos porque todos são sem fundamento.
Conclusão: um argumento religioso pró ou contra qualquer coisa é falacioso ou sem fundamento.
B. “Desligando” e a Firmeza da Ilógica
Quando duas pessoas iniciam uma discussão de religião com pretensões de racionalidade, é comum, eu vejo, que pessoas que são religiosas simplesmente se desligam em pontos críticos no debate. Ao falar com anti-teístas, pessoas religiosas geralmente reagem com surpresa, quase sempre negativa, quando são informadas da posição do seu interlocutor. Um sentimento interior de horror não é incomum, especialmente entre cristãos conservadores—“A alma deste cara é destinada ao inferno!”—que poderão ou não tentar esconder. Então, quanto aos anti-teístas, as pessoas religiosas mentalmente fecham suas mentes a mais pensamento lógico e cessa a pretensão de debate.
Se as pessoas religiosas estiverem conversando com pessoas de outras crenças religiosos, suas reações tendem a ser menos negativas que as com anti-teístas, apesar de que agora o Islã está ficando lá em cima no ranking em termos de provocação de reações negativas entre conservadores religiosos.
(Confio, é claro, que não tenha tocado da tecla “Delete” e que esteja lendo ainda. Se você de fato teclou “Delete”, me decepcionou.)
Anexo é um artigo por Jeffrey Kluger em TIME titulado, “Já sei a verdade, assim não me incomoda com fatos”. Cita um estudo no qual foi solicitado que 750 pessoas reconsiderassem suas posições sobre o chamado “Mesquita do Ponto Zero” na cidade de Nova York, na luz de informações objetivas sobre a questão. Menos de um terço das pessoas estava disposto a considerar reconsideração!
Tal rigidez lógica caracteriza as religiões. Insistem em iniciar a instrução religiosa quando os sujeitos são crianças e—nem um pouco incidentalmente—incapazes de análise e pensamento lógico sérios. As crianças são ensinadas a aceitarem conceitos que desafiam a ciência—isto é, lógica e prova—e instruídas para depender da fé se e/ou quando suas crenças religiosas forem questionadas. Como Richard Dawkins observou sarcasticamente num ensaio, aquelas pessoas que acreditam nas coisas mais incríveis e ilógicas são admiradas por outros religiosos pela força da sua fé!
Tudo isto para apelar ao seu senso de lógica e razão: não “desligue”. Tente ficar de mente aberto sobre Israel e os palestinos. Continue lendo.
C. Anti-Semitismo
A Bíblia exorta os judeus a massacrar seus inimigos e perpetrar todo tipo de selvageria. Coisas tão ruins quanto—ou, considerando a genocida, talvez piores que—as coisas que fazem ou são acusados de fazer os palestinos. Mas pessoas civilizadas no século 21 têm crescido e ultrapassaram os textos bíblicos. Por isso religiões que se baseiam na Bíblia têm que usar os textos seletivamente, um argumento persuasivo de que seus textos foram montados por homens e não um deus.
Desde pelo menos os tempos medievais os judeus têm sido sujeitos a abusos terríveis por várias razões. Argumentos de desenvolvimento evolucionário apontam para a desconfiança no alheio: na medida em que os judeus têm crenças e práticas que são diferentes que as dos outros, têm sido objeto de desconfiança. E há ciúmes e inveja humanos simples: na medida em que judeus—cuja inteligência na média é demonstravelmente alta e cujos valores culturais prezam a educação—sejam realizadores acima de média, são invejados pelos burros e os preguiçosos. Certamente isto está por trás de muito sentimento anti-semita hoje em dia.
É importante manter em mente, é claro, que o que hoje vemos como abusos terríveis—e.g., a Inquisição—não eram abusos para aqueles que os praticaram. Estavam simplesmente seguindo os preceitos da sua religião, realizando o que decidiram acreditar como sendo as instruções do seu deus.
O que é irônico é que agora os judeus em Israel discriminam contra os árabes, que não poderão ter os mesmos direitos plenos dos judeus israelenses, porque os árabes não compartilham crenças judaicas.
No meu caso, você não encontrará no meu histórico qualquer evidência com sentido de que o anti-semitismo seja parte de minha estrutura de atitudes ou crenças. Não é. Anti-religião por certo é parte de mim, porém não anti-semitismo: não discrimino. Rejeito todas as religiões. E não invejo nem tenho ciúmes dos elevados realizadores: admiro-os, pressupondo que suas realizações sejam legítimas. (George Soros vem à mente como bom exemplo.)
D. Direitos das Pessoas quanto à Terra
Assuntos que lidam com bens imóveis têm seu próprio corpo de leis inteiramente separado por uma razão simples: não se fazem mais terra, não obstante ilhas feitas por homens no estilo de Dubai. E por razões que poderá ser argumentado não são inteiramente racionais, seres humanos tendem a se tornar ligados aos seus imóveis. Infelizmente para alguns, fatores como poder e um monte de outros são envolvidos, e pessoas que gostam das suas propriedades frequentemente acabam perdendo-as. Exemplos historicamente recentes incluem os povos indígenas das Américas Norte e Sul, aborígines na Austrália, tribos africanas, e por ai vai.
Quanto aos argumentos sem esperanças em favor dessas pessoas deslocadas, a sociedade hoje amarra a cara, levanta os ombros e disse, “Oh, well...”
Agora, você acha que isto é moralmente Correto (com C maiúsculo)?
E. A Terra Prometida
Já que sou agressivamente anti-teísta, obviamente não coloco nenhum peso em argumentos que um pedaço específico de terra pertence a qualquer grupo porque foi prometido por um deus. Especialmente se tal promessa estiver contida em textos auto-interessados escritos pelos beneficiários. Especialmente, também, se outros grupos têm deuses que poderão lhes dar contra reivindicações. E especialmente se longos períodos de tempo passaram quando tais outros grupos ocuparam a terra e de repente foram deslocados dela. Se a quantidade de tempo que passou é o que valida reivindicações quanto à terra, parece que a correlação deva ser inversa: mais tempo passado, menos válida a reivindicação. Menos tempo, mais válida. (Um cínico ou cético diria que isto é precisamente a razão pela intransigência de Israel quanto ao processo da paz e sua colonização continuada da Cisjordânia.). Mas nenhum peso deverá ser dado aos deuses de um ou outro grupo, porque seus deuses estão por definição em conflito, e nenhum é superior aos outros. (De fato, não há evidência alguma que algum deles existe.) E lembre-se que a religião é totalitária.
Você sabe para onde estou indo, é claro. Não posso aceitar argumentos que certos metros quadrados no Oriente Médio são propriedade dos judeus porque um deus judeu os prometeu em textos que os próprios judeus mesmos escreveram. Se for válido esse argumento, prepare-se para sair do Brasil e devolvê-lo às tribos indígenas. América, saia: os índios estão de volta.
F. Praticidade
Apesar dos esforços de estabelecer um estado judeu terem começado antes da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto deu a esses esforços elementos práticos, credibilidade e justificativa. Assim Israel foi estabelecido, mesmo significando o deslocamento de palestinos que haviam vivido na terra durante séculos, períodos tão longos quanto os que colonizadores europeus têm declarado como suas as terras no Novo Mundo. São ilógicos argumentos baseados em religião de que os direitos dos palestinos devem ser ignorados.
G. Mais Versus Menos Avançados
As sociedades são diferentes, obviamente. Seus níveis sociais, econômicos e culturais são diferentes. Quem é que poderá dizer que um é “mais elevado” ou “melhor”? Os finlandeses estão bastante satisfeitos com suas avaliações consistentemente altas em comparações internacionais, mais isto faz a Finlândia melhor que o Brasil? Melhor que Canadá? Melhor que qualquer lugar? Num mundo ideal talvez todos nós estaríamos livres para escolher o “melhor” lugar para morar, mas aposto que muitas pessoas não mudariam. E certamente nem todos considerariam um certo lugar melhor que todos os outros.
A evidência é óbvia que os níveis sociais, econômicos e culturais de Israel e seus vizinhos são significantemente—até enormemente—diferentes. O fato de serem diferentes—mais elevados versus mais baixos é o que europeus ocidentais provavelmente diriam—não significa que seja melhores na opinião de todos. Osama bin Laden é bastante firme no ponto de que sociedades ocidentais sejam inferiores aos seus conceitos de uma sociedade islâmica, e não há maneira de convencê-lo que seja diferente.
Argumentos israelenses—ou simplesmente crenças—de que são superiores aos seus vizinhos são baseados em julgamentos que incluem preferências individuais e da sociedade, e não diferenças inerentemente lógicas. Mesmo, apesar disso, se optarmos por decidir que sociedades nas quais leis religiosas tratam mulheres numa maneira “inferior” em relação à maneira como são tratadas no ocidente—ou in Israel—são de alguma forma “erradas”, isto não serve para justificar comportamento israelense impróprio.
H. Ocupação de Terra de Outros
Novamente, vamos ser práticos: Israel é uma realidade. Não por causa de deuses mas sim por causa de decisões políticas. Argumentos que o estado não tem razão de ser—a justificativa sendo que durante quase dois milênios a terra estava nas mãos de outros—simplesmente não vão colar. Mas tampouco colará o argumento que Israel tem um direito divino a qualquer coisa, fundamentado como é em textos escritos há muito tempo por homens para atender os objetivos dos seus autores. Especialmente se textos igualmente “válidos”—ou talvez “inválidos”?—nas mãos dos vizinhos de Israel competem com tais textos antigos.
Assim Israel, sendo prático, deve concordar em voltar às fronteira de 1967. Legitimamente deve concordar em fazer isto somente sob condições que proporcionarão probabilidade razoável que seus vizinhos não enviarão foguetes ou soltar bombas ou iniciar guerras. Argumentar isto não é anti-semita, é prático.
Pressupondo que as fronteiras de 1967 sejam válidas, os colonizadores judeus na Cisjordânia estão ocupando a terra, e estão tomando terra que pertence a outros. Diferenças sócio-econômicas ou culturais não são a questão. A questão é tomar terra que pertence a outros. Como você consegue justificar isto? Você tem um belo apartamento no Rio de Janeiro, um que José Dirceu—inspirado por Fidel Castro e Hugo Chávez—poderia gostar de ter, talvez por uma ou outra namorada. Recompensa inadequada ou nenhuma, é claro, especialmente se considera você—um judeu—diferente dele. Gosta da idéia de perder sua casa?
I. Críticas de Israel
Quando Israel é criticado, seus defensores com demasiada frequência dependem de dois argumentos, um que é um non sequitur e outro que é irrelevante ou um segundo non sequitur. Primeiro eles lembram seus interlocutores como os judeus sofreram às mãos dos outros durante os séculos, algo que somente os ideólogos negam. Mas isto não justifica a ocupação por Israel de terra de outros. Então argumentam que criticar Israel é anti-semita, como alega o discurso feito pela Pilar Rahola. Eu argumento que uma pessoa poderá ter, ou não, uma atitude positiva quanto ao judaísmo e ainda apresentar argumentos lógicos e legítimos criticando a colonização por Israel da Cisjordânia. Assim um grito de anti-semitismo contra tais argumentos é irrelevante ou um non sequitur.
Yasser Arafat foi corrupto e incompetente. Hamas—uma criação de Israel, entendo—é um bando de fanáticos com os quais diálogo racional é difícil se não impossível. Ahmadinejad é um pretendente a ditador. E por ai vai. Israel tem inimigos. Sem dúvida. Mas isto não justifica sua ocupação da terra de outros.
Se você não leu a crítica do AIPAC escrita por Mearsheimer e Walt—publicada no site da Universidade Harvard em 2006—você realmente deveria. (Tenho o texto completo, tanto com quanto sem as anotações de rodapé, e posso mandá-lo a você.) Alan Dershowitz, sem nenhuma surpresa, gritou seu non sequitir usual “Anti-semitismo!” Besteira: foi um crítica sólida e bem racionada.
Estou anexando um artigo de Uri Avnery do Gush Shalom que encontrei através de CounterCurrents.org, um website liberal no sentido progressivo. Não sei quem é Avnery nem o que faz Gush Shalom, a não ser que ambos buscam a paz. Eles são os que têm Razão.
Penultimamente estou anexando outro artigo de TIME sobre os ocupadores israelenses que estão destruindo as olivas dos palestinos. A reportagem enfurece por causa do sentimento auto-convencido (“smug”) israelense exemplificado pelo último parágrafo, justamente o que proporciona à Hamas sua munição moral e psicológica.
A vista do topo da colina é maravilhosa; o sorriso do Binyamin esconde satisfação. “Adoraria sentar no vale”, disse. “Estamos presos num conflito de povo contra povo. Espero que o cara de Bureen tenha um bom futuro. Mas todos meus esforços serão para garantir que seu futuro não será aqui. Porque esta terra pertence ao povo judeu”.
E finalmente, providencialmente—apesar de eu não acreditar na Providência—o artigo de Roger Cohen publicado em The New York Times em 28 de outubro de 2011 e sua tradução aqui hoje em O Estado de São Paulo. Como escreve, é Crunch Time.
De volta a você, meu amigo.
William
Anexos
- 2010-10-29, TIME, Kluger, Jeffrey, ‘I Know the Truth, Don’t Bother Me with Facts’.doc (205 KB)
- 2010-10-23, CounterCurrents, Avnery, Uri, ‘Weimar in Jerusalem’.doc (311 KB)
- 2010-10-29, TIME, Vick, Karl, ‘Olive Harvest War, Palestinians vs Settlers’.doc (139 KB)
- 2010-11-01, OESP (NYT), Cohen, Roger, ‘Chegou a Hora de Israel Decidir seu Futuro’.doc (83 KB)
- 2010-11-01, NYT, Cohen, Roger, ‘Crunch Time’.doc (83 KB)
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